quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Para ajudar um País é preciso ocupá-lo?

Para ajudar um País é preciso ocupá-lo?

27-Jan-2010

O controlo militar e político dos Estados Unidos sobre o rumo dos acontecimentos presentes e futuros no Haiti levanta a dúvida: assistimos a uma acção de socorro ou a uma invasão militar? Artigo de José Goulão.

Alan Joyandet, ministro francês encarregado do auxílio humanitário ao Haiti, teve um confronto verbal com um alto responsável militar norte-americano quando pretendia organizar um voo de evacuação de vítimas no aeroporto de Port-au-Prince. Depois desabafou: “Trata-se de ajudar o Haiti, não de ocupar o Haiti”. O episódio merece reflexão.

A organização Médicos Sem Fronteiras já tinha dado o alerta quando revelou ao mundo que centenas de vítimas do terramoto do Haiti estavam a ser prejudicadas pelo tipo de opções que o controlo militar norte-americano do principal aeroporto do Haiti estava a fazer. Por causa disso, aviões transportando médicos, medicamentos e outros meios de apoio aos feridos atingidos pela catástrofe já tinham sido obrigados a voltar para trás. Por causa disso, médicos no terreno não conseguiram salvar mais vidas ou foram obrigados a recorrer com mais frequência ao indesejado recurso da amputação para garantir sobrevivências.

O assunto instalou-se na ordem do dia apesar da enorme barragem de informação promovendo a operação humanitária fardada dirigida pelo Pentágono e pelo Departamento de Estado que os Estados Unidos desenvolvem no Haiti. A legítima dúvida é: assistimos a uma acção de socorro ou a uma invasão militar?

O presidente francês desautorizou o seu ministro e minimizou a importância do desabafo acima transcrito, certamente para não incomodar Washington. Perante o cenário de guerra montado nos escombros da catástrofe não há, porém, manobra diplomática capaz de apagar das memórias a exclamação então proferida por um desalentado habitante de New Orleans vítima do Katrina: “pedimos comida e alojamento e o governo manda-nos homens armados”. A frase correu mundo e, como se sabe, no terreno não estavam apenas membros das forças armadas mas também mercenários de empresas mal afamadas, como a então denominada Blackwater, contratadas pelo governo.

À frente da operação de socorro de New Orleans esteve o presidente George W. Bush e o desempenho alcançado contribuiu para deixar ainda mais por terra o seu abalado prestígio.

Por iniciativa do seu sucessor, Barak Obama, George W. Bush exerce agora funções de coordenação das iniciativas de socorro ao Haiti.

No terreno, o controlo das operações norte-americanas foi atribuído ao Comando Sul, o Southcom, que tem o quartel-general em Miami. Em termos gerais, a missão desta estrutura militar é a de “comandar operações militares e permitir uma cooperação segura para os objectivos estratégicos dos Estados Unidos da América” em toda a região latino-americana. Como ainda notou recentemente o director de Le Monde Diplomatique, Ignacio Ramonet, é o Southcom, por exemplo, que coordena a rede de 13 bases militares norte-americanas que cercam a Venezuela.

O general Douglas Fraser, comandante do Southcom, explica que a operação no Haiti se subordina ao conceito “dos três C’s”: “comando, controlo, comunicações”, de modo a que os Estados Unidos “possam compreender melhor o que está a acontecer”. O presidente Barak Obama solicitara aliás, no dia imediato ao terramoto, que os serviços militares norte-americanos traçassem “o mapa da destruição”. Daí que o primeiro sinal de auxílio oficial dos Estados Unidos ao Haiti – excluindo as organizações não-governamentais envolvidas desde a primeira hora nas acções internacionais de socorro – tenha sido o envio de aviões não tripulados, os drones, para cartografar a nova realidade.

Passando das palavras do general Fraser à prática, tropas norte-americanas (que podem chegar a 10 mil efectivos, entre eles dois mil marines) começaram por ocupar o aeroporto de Port-au-Prince, afastaram os operacionais haitianos e colocaram controladores de tráfego militares em funções, segundo informação do embaixador do Haiti em Washington; a seguir, tomaram conta do que restava das comunicações governamentais haitianas e assumiram o poder sobre as fontes de energia do país. O processo prossegue através da gestão dos transportes e das infra-estruturas.

O comportamento operacional norte-americano em território do Haiti coincide quase em absoluto com a teorização sobre a reacção à catástrofe haitiana produzida pelo think tank e poderoso lobby neo-conservador Heritage Foundation, identificado com os sectores republicanos mais militaristas e extremistas. Segundo esta organização, “o terramoto tem simultaneamente implicações humanitárias e de segurança nacional para os Estados Unidos”. Considera a Heritage Foundation que essas implicações requerem uma “resposta rápida, que terá de ser não apenas importante mas decisiva, a cargo das instituições militares, governamentais e civis, orientada a curto prazo pelo socorro ao Haiti e, a longo prazo, por um programa de recuperação e reforma do país”.

Pertence ainda à Heritage Foundation a tese segundo a qual “Cuba e Venezuela aproveitam o terramoto no Haiti e a fragilidade do governo de René Preval para tentar diminuir a influência dos Estados Unidos na região”. Daí também o cariz militar da operação de socorro.

De acordo com várias declarações de responsáveis dos Estados Unidos, a presença militar no interior do Haiti e o patrulhamento das águas territoriais deste país por embarcações da Guarda Costeira norte-americana relacionam-se igualmente com os problemas de imigração. A Guarda Costeira é conhecida nas águas das Caraíbas por ter um filtro muito especial, totalmente livre para os cubanos que procuram Miami e absolutamente estanque, por exemplo, para os haitianos. As autoridades norte-americanas de imigração já expulsaram para o seu país cidadãos do Haiti que tinham conseguido chegar a território dos Estados Unidos fugidos ao drama do terramoto.

O almirante James Watson da Guarda Costeira definiu o objectivo da missão em águas haitianas com as seguintes palavras: “trabalhar com o Departamento de Defesa, o Departamento de Estado e as várias agências governamentais para minimizar o risco de os haitianos saírem do seu país; queremos fornecer-lhes auxílio para que possam viver no Haiti”.

Quando a totalidade do contingente norte-americano estiver no Haiti, “para ajudar a restaurar a ordem”, o número de militares estrangeiros no país atingirá quase vinte mil efectivos, incluindo os da Minustah, a força da ONU.

Este contingente foi criado em 2004 para assumir o controlo do Haiti na sequência do ainda mal esclarecido golpe que depôs o presidente Jean-Bertrand Aristide, alegadamente envolvido em fraudes e corrupção. Forças militares norte-americanas apoiaram o golpe e foram substituídas depois pelos militares das Nações Unidas. Durante os últimos anos, o regime do presidente René Preval, agora relegado para segundo plano pela forma como os Estados Unidos responderam aos efeitos do terramoto, promoveu uma polémica reestruturação das forças policiais e militares. As forças armadas foram preparadas com a colaboração da DynCorp, empresa privada norte-americana de mercenários que figura entre as habituais contratadas do Pentágono. As forças policiais assimilaram membros dos esquadrões da morte envolvidos no golpe de 2004, muitos dos quais originários das milícias terroristas dos Tonton Macoute, guardas pretorianas dos ditadores Duvalier.

Marguerite Laurent, destacada advogada que colaborou com a administração de Jean-Bertrand Aristide, divulgou informações segundo as quais há anos que os Estados Unidos mantêm o petróleo que supostamente detectaram no Haiti como uma reserva para articular de acordo com a evolução da situação no Médio Oriente. A privatização dos portos haitianos de águas profundas permitiu entretanto às grandes companhias petrolíferas norte-americanas que deles se assenhorearam proceder a operações de refinação e de transporte em condições que não lhes seriam permitidas nos Estados Unidos por razões ambientais.
É de crer, perante o modo como as forças da Minustah foram afectadas pelo terramoto, sofrendo considerável número de vítimas mortais e a perda total de instalações, que as tropas norte-americanas assumam cada vez mais o papel que lhes estava atribuído desde 2004. O controlo militar e político dos Estados Unidos sobre o rumo dos acontecimentos presentes e futuros no Haiti será assim incontornável, como acontece há um século, com ou sem catástrofes naturais. Tal domínio é afinal tão endémico como a miséria a que a esmagadora maioria dos haitianos estão submetidos.

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